Assim falava Zaratustra
“Sê bem-vindo, adivinho da grande lassidão – disse Zaratustra; – não foste em vão meu hóspede e comensal. Come e bebe hoje também na minha morada, e deixa que se sente à tua mesa um velho alegre”.
– “Um velho alegre? – respondeu o adivinho, meneando a cabeça.
– Quem quer que sejas ou desejes ser, Zaratustra, já o não serás por muito tempo cá em cima; dentro em pouco a tua barca já não estará ao abrigo”. “Acaso estou eu ao abrigo?” perguntou, rindo, Zaratustra.
O adivinho respondeu: “Em torno da tua montanha sobem mais e mais as ondas da imensa miséria e da aflição: não tarda a erguer a tua barca e arrastar-te com ela”. Zaratustra calou-se, admirado.
– “Não ouves, ainda? – continuou o adivinho.
– Não sobe o abismo um zumbido, um rumor surdo?
” Zaratustra permaneceu calado e escutou.
Ouviu então um grito prolongado, soltado de uns para os outros abismos, pois nenhum deles o queria reter, tão funesto era o seu som.
Sinistro agoureiro, – disse afinal, Zaratustra
– isto é um grito de angústia, e grito de um homem; provavelmente sai de um mar negro.
Que me importa, porém, a angústia dos homens! O último pecado que me está reservado... sabes como se chama?
“Compaixão! – respondeu o adivinho, cujo coração transbordava, erguendo as mãos.
– Ó! Zaratustra!
Venho aqui fazer-te cometer o último pecado!”
Apenas pronunciadas estas palavras, tornou a ressoar o grito, mais prolongado e angustioso do que dantes, e já muito mais próximo.
“Ouves, ouves, Zaratustra? – exclamou o adivinho.
– A ti se dirige o grito, é por ti que chama: vem, vem, vem; já é tempo; não há um momento a perder!”
Zaratustra, entretanto, calava-se, perturbado e alterado. Por fim perguntou, como quem hesita interiormente: “E quem me chama lá de baixo?”
“Bem o sabes – respondeu vivamente o adivinho.
– Por que te ocultas? É o homem superior que te chama em seu auxílio”.
“O homem superior! – gritou Zaratustra, admirado.
– E que quer ele?
Que quer o homem superior?
O que que quer ele aqui?
” E o corpo cobriu-se-lhe de suor.
O adivinho não respondeu à angústia de Zaratustra: escutava e tornava a escutar, inclinado para o abismo. Mas como o silêncio se prolongasse muito olhou para trás e viu Zaratustra de pé e a tremer.
“Zaratustra, – começou a dizer em voz triste:
– não aparentes brincar de alegria.
Embora quisesses dançar diante de mim e dar todos os teus saltos, ninguém me poderia dizer:
“Olha, aí tens o baile do último homem alegre!”
Em vão subirá a esta altura quem procurar aqui esse homem: encontraria cavernas e grutas, esconderijos para a gente que se precisa ocultar, mas não poços de felicidade nem tesouros, nem novos filões áureos de ventura
Texto de Nietzsche
Pensamento do dia
Quem esperar pela noite para ganhar tranqüilidade, sua alma viverá atormentada por sonhos fantasmagóricos.
João António Fernandes
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